Durante os mais de quinze anos de vigência da lei 11.101/05, a tributação dos ganhos de capital oriundos da alienação de bens ou direitos da empresa recuperanda, bem como das reduções da dívida obtidas a partir da renegociação com os credores, era um tema muito controvertido na doutrina e na jurisprudência. A partir de ângulos diferentes, contribuintes, Fisco e magistrados de todo o País discordavam acerca da possibilidade, ou não, da cobrança de tributos, quais sejam, o Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ), a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), entre outros. Contudo, após o levantamento dos vetos presidenciais sobre a lei 14.112/20, pelo Congresso Nacional, a discussão parece ter chegado a um final animador.
Veja-se que, anteriormente à reforma da Lei de Recuperações e Falência (LREF), não havia uma disposição expressa na legislação que protegesse a empresa recuperanda de ver parte dos esforços dispendidos na redução da dívida serem tributados pela Fazenda Nacional. Mais especificamente, o Fisco entendia que a venda de ativos, bem como a renegociação dos créditos, importava em um aumento patrimonial da devedora, visto que, contabilmente, tais resultados podem ser conceituados dessa forma. Aliás, a Receia Federal inclusive editou, no ano de 2013, uma Solução de Consulta COSIT 21/13, no sentido de firmar posicionamento com relação a validade da cobrança do IRPJ, da CSLL, do PIS/Pasep e da Cofins.1 Ocorre que, os contribuintes e boa parte da jurisprudência tinham dificuldades de aceitar tal interpretação, na medida que, em realidade, inexistia qualquer acréscimo patrimonial - receitas, lucro e renda.
Entretanto, como dito anteriormente, a controvérsia parece ter chegado ao fim. Junto com a atualização do sistema de insolvência brasileiro, o legislador optou por estabelecer uma excludente de tributação, nos casos em que a empresa em recuperação se beneficia da venda de ativos durante o processo recuperacional (Art. 6º-B) ou com a diminuição da dívida total por meio das renegociações típicas da recuperação judicial (Art. 50-A). Em verdade, tal medida trouxe robustez e eficiência às reestruturações empresariais, visto que a tributação da devedora, no mínimo, divergia frontalmente dos propósitos fundamentais para o sucesso de um plano de recuperação judicial, como a preservação da empresa, a manutenção da fonte produtora, dos empregos dos trabalhadores, dos interesses dos credores, do cumprimento de sua função social e do estímulo à atividade econômica.
Ou seja, a manutenção do regramento anterior não somente gerava injustiças com relação a inexistência dos fatos geradores dos tributos (IRPJ, CSLL, PIS e COFINS), como também tornava apenas mais dificultosos e ineficientes os processos de recuperação judicial. De fato, não se pode considerar razoável que a eliminação do passivo e o consequente soerguimento da empresa acarrete a constituição de novas obrigações de natureza fiscal, as quais em nada favorecem a recolocação da devedora no mercado.
A partir disso, insta tecer comentários acerca das bases de cálculo dos tributos aqui versados. Em primeiro lugar, veja-se que a seguridade social, de acordo com o artigo 195, da Constituição Federal, será financiada por toda a sociedade, de forma direta ou indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como por meio de contribuições sociais. As que nos interessam, neste trabalho, estão previstas no artigo I, do artigo supracitado.
Nele, nos é informado que irão financiar a seguridade social as contribuições do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; b) a receita ou o faturamento; e c) o lucro. Destas, nos importam as alíneas "b" e "c".
Com relação à receita e ao faturamento, temos as contribuições ao PIS e à COFINS, instituídas, no regime cumulativo, pela lei 9.718/98 e, no regime não cumulativo, pelas leis 10.637/02 e 10.833/03, respectivamente. Por outro lado, com relação à alínea "c", ou seja, o lucro, temos a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido - CSLL, instituída pela lei 7.689/88.
Por fim, o último tributo que nos importa é o Imposto de Renda da Pessoa Jurídica - IRPJ, o qual possui base constitucional no artigo 153, III, da Constituição Federal, que dispõe que compete à União instituir impostos sobre a renda e proventos de qualquer natureza. Seguindo a disposição constitucional, os artigos 43, 44, e 45, todos do Código Tributário Nacional, preveem os contornos gerais do IRPJ.
Ademais, insta trazer à tona, também, os conceitos constitucionais de renda e receita. Quanto ao conceito constitucional de renda, de pronto, verifica-se que este não está expressamente descrito na Carta Magna. Desta forma, restou ao Supremo Tribunal Federal, ao interpretar a Constituição Federal, definir que o conceito constitucional de renda pressupõe um acréscimo patrimonial (vide Recurso Extraordinário 117.887-6/SP)3. Assim, percebe-se que apesar da Lei Maior não apresentar um conceito de renda de forma expressa, pela via oblíqua, delimita-o, permitindo-se que se defina que renda e proventos de qualquer natureza devem representar ganhos ou riquezas de forma a atender o princípio da capacidade contributiva, previsto no artigo 145, §1º, da Constituição Federal.
Da mesma forma, o conceito constitucional de receita bruta - base de cálculo das contribuições ao PIS e à COFINS - não se encontra expresso na Constituição Federal. No entanto, a jurisprudência firmou-se no sentido de defini-lo como o ingresso que efetivamente se incorpora ao patrimônio do contribuinte, não podendo contemplar valores que espelham efetiva despesa.
Desta feita, embora contabilmente os valores decorrentes da redução de dívidas, juros, multas e encargos legais no âmbito da recuperação judicial impactem na apuração de seu lucro líquido, tais quantias não se amoldam ao conceito supramencionado de renda ou receita, para fins de incidência de IRPJ, de CSLL, de PIS e de COFINS. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento de Recurso Extraordinário 606.107/RS (Tema 283), submetido ao rito da repercussão geral, estabeleceu que, ainda que a contabilidade elaborada para fins de informação ao mercado, gestão e planejamento das empresas possa ser tomada pela lei como ponto de partida para a determinação das bases de cálculo de diversos tributos, de modo algum subordina a tributação. Desta forma, conclui-se que a contabilidade constitui ferramenta utilizada também para fins tributários, mas moldada nesta seara pelos princípios e regras próprios do Direito Tributário.4
Em síntese, há de se determinar que, muito embora o direito possa se basear em aspectos técnicos - como é o caso da Resolução 1.374/11 do Conselho Federal de Contabilidade -, este não pode, e nem deve, estar adstrito e encapsulado em determinado segmento. E no caso do direito tributário não é diferente. Como apresentado, os tributos apresentam aspectos muito mais fundamentais do que a contabilidade poderia mensurar, como a função social, proporcionalidade e finalidade arrecadatória. No caso em tela, considerando os princípios gerais do direito tributário e do direito recuperatório, é evidente que não se pode desconsiderar o objetivo do processo de recuperação judicial, qual seja, o soerguimento de uma empresa em crise com o fim de preservar-se empregos, perpetuar-se o ganho e distribuição do capital e manter-se a arrecadação de tributos a partir da atividade empresarial.
Com efeito, percebe-se que, ao reformar a lei 11.101/05 e estabelecer limites de tributação no âmbito de alienações de ativos e perdão de dívidas da empresa em recuperação judicial, o legislador optou por, expressamente, consolidar o entendimento substancial do direito tributário, e não apenas se ater a aspectos técnicos, os quais aparentam ser desconectados da realidade econômica e jurídica contemporânea. De fato, o sistema de insolvência e preservação da empresa se consolida ainda mais, sendo dotado de mecanismos eficientes e eficazes de proteção e incentivo ao empreendedorismo, ao mesmo tempo que se mantém coerente com o texto constitucional e os princípios do direito.
Assim, a partir do levantamento dos vetos, os artigos 6-B e 50-A passam a ter plena vigência, retroativamente, desde a data de entrada em vigor da lei 14.112/20, em 24 de janeiro de 2021. De forma sintética, o artigo 6-B define que a parcela do lucro líquido decorrente de ganho de capital resultante de alienação judicial de bens ou direitos não podem ser considerados para a apuração do Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) bem como da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Do mesmo modo, o artigo 50-A determina que a renegociação de dívidas de pessoa jurídica no âmbito da recuperação judicial, sejam as dívidas sujeitas ou não ao processo, não serão computadas na apuração da apuração da base de cálculo da Contribuição para o Programa de Integração Social (PIS), do Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PASEP) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), bem como também não se sujeitaram ao limite percentual de dedução do IRPJ e da CSLL.
Com efeito, cabe aos intérpretes e operadores do direito reconhecer a grande evolução ao qual os direitos tributário e da insolvência vem passando na atualidade. Muito embora ainda seja possível apontar grandes falhas e imprecisões na legislação dessas duas áreas, por certo também não se pode deixar de identificar as mudanças que tornam o ordenamento jurídico cada vez mais integrado, coerente e coeso, efetiva proteção e tutela dos direitos.